naquela tarde, não da maneira como estamos acostumados a ouvir, mas apenas com uma lágrima que rolou até seu focinho negro e se postou no chão como uma pequenina gota do imenso oceano da insensibilidade humana.
Pacco já nem ouvia mais as palavras dos corações ressecados pela falta de amor e respeito. Se manteve durante dias e dias sobrevivendo em um lugar ironicamente chamado de Val"paraíso"...indiferente aos "feios", "peladeira" e "sem raça" que ouvia... ele já estava acostumado.
Neste dia, pudemos abaixar e passar a mão carinhosamente por sua carinha triste e desiludida, também emudecida e um pouco desconfiada...afagamos sua dor, sabiamos o que ele sentia, pois nossos corações, também sentindo a rejeição ao Pacco, trancavam nossa respiração e assim, chorávamos mudas no peito.
Pacco, vira-latas esperto, que aos trancos e barrancos conseguiu, desde pequenininho, se virar sozinho num bairro de corpos vazios, que parecem ser sempre empurrados para a frente, pisoteando tudo e todos, que sobreviveu as tentativas de afogamento em um rio...
-Vamos embora Pacco! Disseram as dindas a ele - um dia encontraremos alguém a tua altura, você já deve estar cansado de esperar por esse alguém, nós sabemos...
Ele nos olhou tímido, com suas orelhas baixas, levantou-se e sacudiu-se e incrédulo como ele só, permitiu que o tocássemos...
Durante muito tempo ele achou que era invisível, sua pele sem pêlos, seu corpo sem carne e suas costelas à mostra nunca foram mencionadas por ninguém, não que ele ouvisse. Ele até gostava, podia aprontar todas pelas ruas daquele "paraíso", cremos que Pacco também não se importava com a morte sempre atravessando a seu lado, muitos de seus amiguinhos acabaram esbarrando nela, alguns até tiveram suas cabeças decepadas (por humanos que transformam a tortura em espetáculo para crianças) e já não vagavam mais como ele atrás de respeito, comida e quem sabe até um lar! Por pura sorte nosso menino não conheceu o macabro!
Ah...os humanos, pensou Pacco, tanta arrogância e insensibilidade...não dispensam um medíocre prazer pela solidariedade, não trocam suas preguiças pelo apoio a um necessitado. Por que valorizam mais suas pequenas vaidades que as nossas misérias? Não se olham no espelho do amanhã? Suas desculpas até que são grandes, suas almas é que são pequenas!
Não pudemos desfazer seu conceito, não tivemos argumentos para tal, achamos até que não adiantaria, pois ele sabia muito mais que nós o que é não ser visto, o que é estar invisível o tempo todo na multidão, embora até conheça pessoas de alma bem grande, mas que infelizmente, são tão desprezadas quanto nossos protegidos, nossos ideais, nossos corações, talvez porque nossa disposição de renunciar às muitas futilidades da vida para cuidar de inocentes necessitados, seja entendida como uma bofetada às suas mediocridades!
Enquanto naquela tarde abraçávamos nosso pequenino amigo, nossa decepção foi se aplacando e dando lugar ao prazer de estar ao lado de quem realmente ama sem preconceitos, sem interesses. (Será que estamos sós?)
Pacco, parecendo ler os pensamentos das dindas, abriu seus olhos negros, balançou sua cauda rala e se permitiu ser cuidado por nós...e sentimos por um momento que nossas almas eram iguais, precisavam de carinho e de proteção e que, na verdade, invisíveis são os que não conseguem aprender a importância de dar e receber o amor verdadeiro que só os animais são capazes de ensinar.
Não nos importávamos mais com a rejeição, agora queríamos mesmo era estar juntos, e hoje, finalmente, seu corpinho de cor indefinida se balança todo enquanto brincamos...e haja força para manter nosso amigo feliz, é tudo que queremos!
Só sua lágrima triste rolando pelo focinho é difícil de secar.
Do resto, estamos cuidando.
Pacco foi resgatado há vinte dias, só agora consegui encontrar as palavras prá contar a história da vida dele.
Mariana, dinda.